Louise Bourgeois é uma das primeiras artistas que vem à mente quando pensamos nos diálogos possíveis entre arte e psicanálise.
(Louise Bourgeois, fotografada por Robert Mapplethorpe em 1982)
Louise nasceu em Paris, em 1911, e veio a falecer aos 98 anos, em Nova York. Em 1932, estudou matemática na Sorbonne, e a partir de 1936 frequentou o curso de história da arte da École du Louvre e estudou desenho na Escola de Belas-Artes, de Paris. Em 1938, casou-se com o historiador Robert Goldwater, e com ele mudou-se para Nova York, onde, em 1945, expôs pela primeira vez no MoMA (The Arts in Therapy). Foi de início pintora, dedicando-se, a partir de 1949, à escultura, para, segundo ela, melhor expressar “o drama de ser um no meio do mundo”. No entanto, a artista só vem a ser reconhecida nos anos 1970, quando passa a integrar a American Academy of Arts and Science, em Nova York. No início dos anos 1990, discute em suas obras a complexidade do desejo em esculturas cada vez maiores. Em 1995, é realizada uma grande retrospectiva da obra de Louise Bourgeois no Museu de Arte Moderna de Paris. Tendo se naturalizado americana em 1951, a artista representou os Estados Unidos na Bienal de Veneza de 1993. Em 1999, recebeu o Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra e em 2009 foi honrada pelo National Women’s Hall of Fame por ter marcado a história dos Estados Unidos.
Dentre muitas obras de caráter autobiográfico, que versam sobre suas relações familiares, elaboração de traumas e formas de lidar com a dor, A destruição do pai (1974) trata de uma relação complexa com seu pai, uma figura bastante opressora e abusiva em sua vida.
(Louise Bourgeois, A destruição do pai, 1974)
É no mínimo curioso o fato de que Louise começou a fazer análise após a morte de seu pai, em 1951, e continuou durante muitos anos com o psicanalista Henry Lowenfeld. Este pesquisou e escreveu sobre a dinâmica psíquica do artista, concluindo que este seria uma espécie de traumatófilo, alguém que estaria incessantemente buscando o trauma como impulso de criação.
A obra em questão reúne elementos utilizados pela artista na década de 1960 e início da década de 1970, quando começa a trazer para a sua arte temas relacionados à sexualidade. Consiste em uma grande instalação feita em gesso e látex (o que causa até uma impressão de pele humana), na qual é possível observar uma grande mesa, que também lembra uma cama, onde são vistos restos e fragmentos, a sobra de seu pai.
O trabalho possui uma carga orgânica, as formas da mesa foram moldadas em peças de animais mortos, colaborando com a transmissão de uma sensação de agonia, que representa a forma como a artista se sentia na presença desse pai. Destaca-se que tanto a mesa quanto a cama são símbolos da vida erótica de um indivíduo: "(...) a mesa onde seus pais o fazem sofrer. E a cama onde você se deita com seu marido, onde seus filhos nasceram, onde você vai morrer."
Nas palavras de Eleanor Munro, que escreveu o perfil da artista: "Há uma mesa de jantar e pode-se ver que acontecem vários tipos de coisas. O pai está se pronunciando, dizendo à plateia cativa como ele é ótimo, todas as coisas maravilhosas que fez, todas as más pessoas que prendeu hoje. Mas isso acontece dia após dia. Uma espécie de ressentimento cresce nas crianças. Chega o dia em que elas se irritam. Há tragédia no ar. Ele já fez demais esse discurso. As crianças o agarram e o põem sobre a mesa. E ele se torna a comida. Elas o dividem, o desmembram e o comem. E assim ele foi liquidado, da mesma forma que tinha liquidado os filhos."
Há um ponto importante a ser extraído do texto: a violência que se dá, dentre outras formas, através da palavra. Ainda, a artista escreveu: "Nós o agarramos, o colocamos sobre a mesa e com nossas facas o dissecamos. Nós o despedaçamos, o desmembramos, cortamos seu pênis. E ele se tornou alimento. Nós o comemos. Trata-se, como se vê, de um drama oral. A irritação foi sua ofensiva verbal contínua." A palavra que sai da boca como ofensa, esse pai que retorna à boca como comida. A boca como ação e reação. Como Louise define: uma cena de um verdadeiro exorcismo.
Faz-se aqui também um paralelo com a figura mítica de Cronos ou Saturno, que devora seus filhos como punição de seu amor incestuoso, mas também nos remete à ideia de antropofagia, na devoração do pai para que ele ocupe um lugar dentro de si, suprindo a ausência de sua figura, estando para sempre perto. Fundir-se com o objeto e ao mesmo tempo destruí-lo, assumir seus atributos, tomar o seu peso e o falo que simboliza o seu poder.
(Francisco Goya, Saturno devorando um filho, c. 1820)
No entanto, também pode-se pensar no mito freudiano elaborado nos escritos de Totem e Tabu, livro que busca estudar o conflito entre indivíduo e sociedade e configurações possíveis na vida civilizada, a constituição de um sujeito humano enquanto sujeito simbólico, considerando a ambivalência das relações.
Segundo Freud, a sociedade começaria com um parricídio, isto é, a morte da figura do pai e a instituição, em seu lugar, de um representante legal, um totem. A partir daí seriam instituídas regras sociais primárias, definindo as estruturas familiares e o sistema de circulação com a interdição do incesto. Nesta história mítica, que é reeditada por cada indivíduo no momento edipiano, em que é preciso se haver com o pai da horda primitiva, entender os dilemas e lidar com a própria hostilidade, é preciso também recriar um pai, a base do totem, para que ocorra a inscrição no mundo social.
Neste ponto, a obra de Bourgeois é bastante literal, tendo em vista que as diversas esculturas que compõem a instalação constituem o próprio banquete totêmico, o grande ritual de reunião da horda primitiva para ingestão (e consequente identificação e incorporação) do pai, de modo a os determinar como submetidos às leis sociais.
A artista inclusive toma esse cuidado ao convocar o irmão para o ato em conjunto, mas sabe-se que a destruição da autoridade do pai era algo muito mais afeito à ela, talvez por uma ótica interpretativa feminista na constituição dessa relação parental, de hierarquia, mas também como um veículo para sua dor e angústia. Mas é possível ir além, a obra é um monumento ao pai, mas com o deslocamento do exibicionismo real de Louis Bourgeois (nota-se também a semelhança simbólica dos nomes: Louis e Louise) para um personagem de uma fantasia.
Destaca-se a relação profunda que a artista possui com a psicanálise, leitora assídua de Freud e Lacan, mas também de Melanie Klein, a obra foi feita após o falecimento de seu marido, momento no qual Louise começou a rever o seu passado traumático por um viés feminista, considerando também um mundo artístico e um mercado excessivamente falocêntricos. Finalmente, o término da influência patriarcal em sua vida.
A obra veio ao Brasil para a XXIV Bienal de São Paulo (Bienal da Antropofagia), ocasião na qual o seguinte excerto de texto crítico foi escrito pela equipe de pesquisa e curadoria: "Genuinamente totêmico em sua função, embora como entidades que contêm em vez de serem contidas, a antítese formal de suas peças entalhadas dos anos 40 e 50, A destruição do pai transformou agressão em expiação da traição filial e vingança coletiva em comunhão mediante uma dialética psicológica escrita na descrição de Freud da transgressão sacramental em sociedades tribais. Freud, paradigmático de parricídio psicológico, acreditava que 'o banquete totêmico, talvez o primeiro que a humanidade jamais celebrara, fosse a repetição, o festival da memória, desse célebre feito criminoso.' Atuando em sintonia e com crueldade conspícua, os membros de um clã estabelecem as fronteiras de conduta e afirmam sua herança comum mediante um excesso calculado e uma culpabilidade compartilhada. Paradoxalmente, então, a matança do pai ou o consumo do animal-totem em que é transubstanciado estabelece um rito comemorativo e um gesto de contrição e reconciliação."
Louise cria a cena, controla o que pode ou não ser visto na instalação, constrói cada parte, escolhe cada material a ser utilizado. Pode-se dizer que a artista reencena sua fantasia de devorar o pai não apenas como uma catarse de se livrar dele, mas como um modo de lidar com a sua dívida para com ele. A filha que nasceu mulher e não homem, que não levaria seu sobrenome adiante, que não tinha pênis. Nesse sentido, vale assistir cada minuto desse vídeo:
Há ainda que propor um olhar para a obra como uma espécie de parábola de vingança edipiana, referente à castração. Além disso, as formas arredondadas das paredes da instalação seriam formas femininas, como seios ou até há quem veja uma grande vagina. A destruição do pai reúne todas essas camadas: inspiração greco-romana, psicanálise, elaboração de uma relação parental ressentida, criação de uma fantasia para realização do desejo, o esfacelamento da Lei Patriarcal, a invenção de uma nova paisagem corporal para as mulheres construída através da destruição, a revisão de um paradigma modernista no mundo da arte e também cauterização da ferida causada pela morte do marido.
A crítica literária Elisabeth Bronfen menciona a dissolução de fronteiras como ponto forte dessa obra de Louise, de modo que ao imaginar a violência sofrida, a artista revive a cena não no âmbito mental, mas ao criar a cena escultural e compartilhá-la com os observadores: "ao dar corpo a sua fantasia num enquadramento específico - uma caixa escura, iluminada teatralmente em vermelho e situada num espaço de exposição - dissolve-se de forma inquietante a fronteira entre o vivo e o inanimado, o presente e o passado, o outro e o eu."
Só dá pra finalizar essa edição afirmando que Louise soube, com maestria, reinventar a si mesma, como artista e como mulher, através dos seus processos e de suas criações. Uma inspiração avassaladora, daquelas que balançam as estruturas e recalculam as rotas de vida.
"Arte não é sobre arte. Arte é sobre vida, e isso resume tudo." Louise Bourgeois
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Um beijo,
Thaís
Que texto precioso! Falei dessa obra da Louise para uma amiga no domingo e, no dia seguinte, o texto apareceu por coincidência no feed. Gosto da forma como ela usa a arte para elaborar os próprios sentimentos e traumas.
que texto delicioso de ler!
esse vídeo da louise é uma dessas pérolas que todo mundo devia parar pra assistir sempre que cruzasse o caminho <3