Há alguns anos, em uma mesa de bar, um amigo me indicou o documentário Rebel Hearts… mas foi só domingo que me deparei com o filme no catálogo do MAX e pude conhecer um pouco mais sobre a artista Corita Kent.
Frances Elizabeth Kent (1918 -1986) foi uma freira norte-americana que se tornou artista plástica e ativista pelos direitos humanos. Juntou-se à Ordem do Imaculado Coração de Maria em 1936 (com 18 anos!), sob o nome de Sister Mary Corita, e foi professora de artes na escola Sisters of the Immaculate Heart of Mary, na Califórnia. Estudou Artes Visuais e uniu suas paixões pela técnica da serigrafia e pela linguagem pop de Andy Warhol em suas obras.
Desde muito cedo demonstrou uma propensão para a arte e foi muito incentivada por seu pai. Quando jovem artista, foi influenciada pela arte medieval que tanto estudava, mas também se interessou pela arte contemporânea de sua época. Suas primeiras obras mostram alguma influência expressionista abstrata e depois pelo movimento Pop Art.
Mas o que encantou mesmo Corita foi a serigrafia. Ela começou a trabalhar com a técnica após terminar a pós-graduação, pois achava que seria um bom método para ensinar aos seus alunos, muitos dos quais eram professores em formação. Além disso, queria que sua arte fosse acessível e estivesse amplamente disponível e essa técnica permitia essa reprodução e disseminação.
A artista começou realizando serigrafias com imagens figurativas e religiosas de uma forma muito diferente do que se via naquele tempo, mas isso acabou desagradando seus superiores na ordem religiosa, que eram extremamente conservadores e resistentes a qualquer tipo de modernização e mudanças internas. Seus trabalhos eram praticamente vistos como afrontas severas.
Corita Kent, Black but Beautiful (1960) e The Lord is with the Thee, esta última tendo sido premiada em 1952 pelo Los Angeles County Museum.
Proibida de usar essas imagens e sofrendo ameaças, Corita acabou seguindo por um outro caminho e incorporou outras imagens às suas obras, como o uso de slogans publicitários, letras de músicas populares (tem até Beatles!), literatura e versículos bíblicos. Sua primeira serigrafia pop foi produzida em 1962, após ver as latas de sopa de Warhol na Ferus Gallery, em Los Angeles.
Essa foi a primeira. Tão linda!
No decorrer dos anos 60 as obras de Corita tornaram-se cada vez mais políticas, trazendo expressamente pautas como pobreza, racismo e injustiça social. Realizou trabalhos muito expressivos contra a Guerra do Vietnã, de modo que suas serigrafias com cores intensas ganharam o mundo e foram aclamadas internacionalmente. Ora, por que as obras de Corita incomodaram tanto os seus superiores? Por trás da religião, outros interesses… sempre foi assim. E ela simplesmente não aceitava.
Em 1968 a artista deixou a Ordem do Imaculado Coração e mudou-se para Boston para um ano sabático, que acabou se prolongando por mais tempo. Corita buscou a liberação oficial de seus votos e deixou tudo em boas condições, tendo mantido vínculos fortes com as outras irmãs durante toda a sua vida. Depois de 1970 seu trabalho caminhou para um estilo mais introspectivo, muito influenciado pela sua nova vida e também pela sua batalha contra o câncer.
É importante mencionar que ela se manteve ativa em causas sociais até a sua morte em 1986 e criou durante toda a sua vida quase 800 edições serigráficas, milhares de aquarelas, bem como realizou inúmeras encomendas públicas e privadas. Em 1997 foi fundado o Corita Art Center, um projeto da Comunidade Imaculado Coração, que preserva e promove a arte, o ensino e a paixão da artista pela justiça social.
Em alguns momentos eu fico pensando como pode existir alguém assim… tão irreverente, autêntica e ousada dentro de um contexto muito específico de uma vida escolhida, cheia de renúncias e privações. Mas a arte fala alto, grita, extrapola os limites e tem horas que é bom a gente se apegar a umas frases de efeito, do tipo que “o que tem que ser tem muita força.”
Para finalizar, compartilho a lista de regras que a artista desenvolveu na década de 60, junto com seus alunos, para direcionar outros estudantes e professores em suas atividades. Quem sabe acaba inspirando a gente um pouco no nosso dia a dia também:
Em tradução livre:
REGRA UM: Encontre um lugar em que você confie e tente confiar nele por um tempo.
REGRA DOIS: Deveres gerais de um aluno: extraia tudo do seu professor; extraia tudo de seus colegas estudantes.
REGRA TRÊS: Deveres gerais de um professor: extrair tudo de seus alunos.
REGRA QUATRO: Considere tudo como um experimento.
REGRA CINCO: Seja autodisciplinado: isso significa encontrar alguém sábio ou inteligente e escolher segui-lo. Ser disciplinado é seguir de um jeito bom. Ser autodisciplinado é seguir um jeito melhor.
REGRA SEIS: Nada é um erro. Não há vitória nem fracasso, só há o fazer.
REGRA SETE: A única regra é o trabalho. Se você trabalhar, isso levará a alguma coisa. São as pessoas que fazem todo o trabalho o tempo todo que eventualmente entendem as coisas.
REGRA OITO: Não tente criar e analisar ao mesmo tempo. São processos diferentes.
REGRA NOVE: Seja feliz sempre que puder. Divirta-se. É mais leve do que você pensa.
REGRA DEZ: “Estamos quebrando todas as regras. Até nossas próprias regras. E como nós fazemos isso? Deixando bastante espaço para quantidades X”. John Cage
DICAS ÚTEIS: Esteja sempre por perto. Venha ou vá para tudo. Sempre vá às aulas. Leia tudo o que puder conseguir pegar. Assista aos filmes com atenção, com frequência. Salve tudo – pode ser útil mais tarde.
🤍✨
“A criatividade pertence ao artista que existe em cada um de nós. Criar significa relacionar-se. A raiz do significado da palavra arte é ‘encaixar’ e todos nós fazemos isso todos os dias.” Corita Kent
Algumas dicas antes do fim
para assistir: Rebel Hearts, Pedro Kos (2021). Um grupo pioneiro de freiras corajosamente se posiciona contra o patriarcado da Igreja Católica, lutando por suas liberdades individuais, suas convições e condições de equidade perante o todo-poderoso Cardeal. Da marcha em Selma em 1965 à Marcha das Mulheres em 2018, essas mulheres remodelaram nossa sociedade com suas ações. Fé acima da religião, crença acima do sistema. Pura inspiração. Disponível no MAX.
para ler: Feminino e Linguagem: itinerários entre o silêncio e o tagarelar, Isabela Pinho, Editora Relicário. Partindo do ensaio “Metafísica da juventude” (1913) de Walter Benjamin, no qual o pensador indica figuras femininas como paradigmas para repensar a linguagem, a cultura e a política, Isabela questiona se existe uma relação entre a tagarelice e a posição feminina na linguagem. A autora ainda vale-se de ensinamentos de Agamben e Lacan para elaborar um tagarelar filosófico de fôlego em torno do tema. Comecei há alguns dias e estou amando. Compre aqui.
para visitar: Eleonore Koch: em cena no MAC USP. Com curadoria de Fernanda Pitta, a exposição apresenta uma reunião de obras da artista, que aborda gêneros pictoricos tradicionais (paisagens, interiores e naturezas-mortas) e uma técnica tão antiga quanto a têmpera a ovo a partir de questões contemporâneas e de sua experiência de vida. Composições e paleta de cor reduzida que dão paz, valorizam o vazio e nos permitem respirar com calma. Para Lore, suas obras deveriam manter um espaço aberto às sensações e aos significados construídos pelo público, que por eles se deixa afetar. Impossível não concordar. Em cartaz até 14 de julho, entrada gratuita.
para indicar: atendimento psicanalítico. Compartilho que iniciei meu percurso na clínica e tenho alguns horários na agenda para atendimento on-line. Se você se interessa por psicanálise ou conhece alguém que está buscando, entre em contato para conversarmos e indique para essa pessoa. Há também vagas sociais para atendimento de mulheres em situação de vulnerabilidade.
Por fim, não dá pra não falar da triste situação do Rio Grande do Sul. Tenho muitos amores por lá, amigos de anos e anos, então compartilho aqui o pedido de um amigo querido, pessoa confiável que está atuando de forma muito corajosa na região.
Vamos ajudar! Nós por nós, sempre.
Um beijo!
Thaís